Iceberg

Era possível ouvir o gelo se partindo. Um coração frio e rígido como uma enorme pedra de gelo, um iceberg... na verdade ela sempre foi mais iceberg que gente, escondia mais da metade do que era na profundeza de dentro, por de trás de uma superfície bonita e pontiaguda. Olhando de fora realmente não dá pra saber como era extraordinária por dentro, e ninguém fazia mesmo questão de chegar mais perto daqueles picos afiados, ameaçadores. Sempre que alguém conseguia tocá-la, no entanto, ela se derretia aos poucos escorrendo em lágrimas pouco salgadas. Fugia. Mas dessa vez foi diferente, ela não conseguiu sair correndo, seus pés endurecidos se recusaram a fazer mais esse esforço sem sentido, mais uma fuga sem remédio, porque as pessoas no mundo insistem em chegar mais perto... as vezes a gente pensa que não, que estamos abandonados em redomas de aço nesse mundo capital, mas a verdade que ela via na prática é que existe uma coisa nos humanos, seja curiosidade ou cuidado, que não cansa de tentar ficar junto. Sem conseguir fugir, de tão perto, de tão perto, de tão perto nasceu uma rachadura na casquinha da superfície, e foi rachando e rachando até que todo o gelo nela virou pedacinhos, e o humano que havia dentro daquele bloco gelado foi esquentando e derretendo o que restou. Dessa história só sobrou a menina que foi iceberg, o outro que ficou tão junto, e um copo de raspadinha.

Bicho-de-cabeça

Ela, invariavelmente, em algum momento se perguntava se era normal ser tão diferente assim... Diferente do pensamento comum... não do pensamento em si, mas da maneira de pensar, da forma como os pensamentos se encaixam na cabeça. – Na minha cabeça, é um milhão de bichinhos ligeiros que correm com pés pequenos e pouco equilíbrio...

- Bichinhos de pé pequeno? Não é piolho, menina?!

- Bichinhos ligeiros? Isso é coisa ruim... coisa do encardido, ligeiro e esperto na cabeça da gente...

- Pouco equilíbrio? Interessante... (sempre me pareceu desequilibrada mesmo...)

- Um milhão? Deixe de ser exagerada...

É... ninguém entendia os bichos da cabeça da menina, nem seus pés ligeiros, nem seu pensamento incomum. Ela, então, invariavelmente, se perguntava se era normal ser tão diferente assim... diferente do pensamento dos outros, não do pensamento em si, mas da forma como os bichos de cada um se moviam nas suas cabeças.