Estive pensando que nessa vida todo mundo nasce lagarta. A gente lagarta conhece o mundo, aprende a viver no mundo, então chega a hora de aprender a viver em você mesmo e aí a gente se fecha num casulo e sai de lá borboleta. Há de ser assim, mas tem horas que a gente esquece que é lagarta e se sente outro bicho qualquer... Tem vez que eu me sinto uma aranha morta. Você já viu uma aranha morta? Aquele monte de perna se junta envolta do corpinho da aranha que vira um pontinho de nada. E eu me sinto assim, uma aranha com suas tantas pernas enroscadas ao redor do corpo, sem distinção entre um e outro, igualzinho minhas tantas idéias se enroscando sobre meus sentimentos na teia de idéias e sentimentos dos outros.
E como é terrível se sentir uma aranha morta tentando ajudar alguém a virar borboleta...
Correr e sentir o vento ardendo no rosto.
Sentir um cheiro delicioso e a boca enchendo de água.
Pedras e algodão me lembrando que existe minha sola do pé.
O sangue escorrendo nas unhas.
Uma boca cheia de dentes.
Ser outra pessoa.
Abraçar alguém que amo.
Rever quem minha memória teimava em relembrar.
Conversar com desconhecidos.
Nadar.
Cair.
Voar.
Caminhar.
Caminhar.
Caminhar...
Todo dia quando acordo pesa no meu estômago a saudade dos mundos que acabei de conhecer.
Era possível ouvir o gelo se partindo. Um coração frio e rígido como uma enorme pedra de gelo, um iceberg... na verdade ela sempre foi mais iceberg que gente, escondia mais da metade do que era na profundeza de dentro, por de trás de uma superfície bonita e pontiaguda. Olhando de fora realmente não dá pra saber como era extraordinária por dentro, e ninguém fazia mesmo questão de chegar mais perto daqueles picos afiados, ameaçadores. Sempre que alguém conseguia tocá-la, no entanto, ela se derretia aos poucos escorrendo em lágrimas pouco salgadas. Fugia. Mas dessa vez foi diferente, ela não conseguiu sair correndo, seus pés endurecidos se recusaram a fazer mais esse esforço sem sentido, mais uma fuga sem remédio, porque as pessoas no mundo insistem em chegar mais perto... as vezes a gente pensa que não, que estamos abandonados em redomas de aço nesse mundo capital, mas a verdade que ela via na prática é que existe uma coisa nos humanos, seja curiosidade ou cuidado, que não cansa de tentar ficar junto. Sem conseguir fugir, de tão perto, de tão perto, de tão perto nasceu uma rachadura na casquinha da superfície, e foi rachando e rachando até que todo o gelo nela virou pedacinhos, e o humano que havia dentro daquele bloco gelado foi esquentando e derretendo o que restou. Dessa história só sobrou a menina que foi iceberg, o outro que ficou tão junto, e um copo de raspadinha.
Ela, invariavelmente, em algum momento se perguntava se era normal ser tão diferente assim... Diferente do pensamento comum... não do pensamento em si, mas da maneira de pensar, da forma como os pensamentos se encaixam na cabeça. – Na minha cabeça, é um milhão de bichinhos ligeiros que correm com pés pequenos e pouco equilíbrio...
- Bichinhos de pé pequeno? Não é piolho, menina?!
- Bichinhos ligeiros? Isso é coisa ruim... coisa do encardido, ligeiro e esperto na cabeça da gente...
- Pouco equilíbrio? Interessante... (sempre me pareceu desequilibrada mesmo...)
- Um milhão? Deixe de ser exagerada...
É... ninguém entendia os bichos da cabeça da menina, nem seus pés ligeiros, nem seu pensamento incomum. Ela, então, invariavelmente, se perguntava se era normal ser tão diferente assim... diferente do pensamento dos outros, não do pensamento em si, mas da forma como os bichos de cada um se moviam nas suas cabeças.
Um sapatinho vermelho de cada vez, depois as meias compridas, os joelhos gêmeos em delicadeza, e a barra rendada do vestido cor de pele amarelada. Quem via até pensava que o vestido era uma decepção na paisagem, destoando dos sapatos escarlates vibrantes, das meia tão brancas e novas... o que não se via, era que o vestido era mais que um vestido encardido, era um companheiro solitário. Todos os dias seu tecido puído corria segurando o vento pra que não batesse com força na barriga da menina; segurava na barra enrolada mais de cinco carambolas que a menina devorava devagar na sombra do cajueiro, era um caju, uma carambola... o caju não ia na barra, pra não dar noda; No traseiro uns seis ou sete fios puxados denunciavam as tardes afofando o chão de terra empedrada pra menina poder descansar; e no final de toda tarde as mangas, uma das poucas partes que ainda conservava maciez, serviam de mãe e dava colo pra cabeça pesada da menina, acariciando as bochechas molhadas, acolhendo suas lágrimas mesmo sem entender o porquê. Era um companheiro solidário, aquele vestido... destoava mesmo do resto do mundo.